‘Grude’ movimenta mercado milionário no Brasil e leva chineses à Amazônia

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Infoamazônia

Pescadores do Pará aproveitam crescente apetite chinês por bexigas natatórias de peixes amazônicos, mas comércio pode minguar sem regulamentação e fiscalização

São 7 horas em meados de outubro, e Belém atinge seu pico de umidade. No mercado Ver-o-Peso, uma grande variedade de alimentos é ofertada desde o amanhecer, incluindo peixes capturados no rio Amazonas e nos mares próximos. Sob o teto alto do mercado de peixe, o cheiro de anos de vendas de pescado preenche o ar. Fileiras de barracas exibem seus produtos sob bandeirinhas coloridas. Seus donos arrumam os melhores cortes enquanto aguardam os clientes.
Cláudio, que vende frutos do mar há 30 anos, eviscera e limpa quatro ou cinco peixes, mas mantém suas bexigas natatórias, o órgão do peixe que controla a flutuabilidade do nado, conhecido na região como “grude”. Moradores não comem esse órgão, mas “clientes veem a bexiga e sabem que o peixe é fresco”.

A pescada-amarela, um dos peixes mais caros à venda no Ver-o-Peso, é distribuída já eviscerada. Sua bexiga natatória sequer chega ao mercado. “Já a venderam há muito tempo!”, Cláudio explica. A carne da pescada-amarela custa cerca de R$ 20 o quilo, ele nos diz, mas sua grude é negociada a R$ 2.800 o quilo. “Cara, muito cara”.
A bexiga natatória de algumas espécies não vale um centavo, enquanto outras são vendidas a preços exorbitantes. Ele nos olha e diz: “todas são vendidas para a China”.
Muitos peixes vendidos em Belém vêm de Vigia, um porto pesqueiro mais ao norte. A cidade de 55 mil habitantes fica às margens da Baía do Marajó. Barcos que saem para o mar pela baía logo chegam ao Oceano Atlântico, onde a água doce se funde com a água salgada – o que significa um bom lugar para pescar.
Quando por sorte os pescadores jogam suas redes e conseguem capturar a pescada-amarela, é como se tivessem encontrado uma joia. “É como ouro no mar”, dizem, referindo-se ao brilho atraente da espécie.
O peixe, encontrado em abundância na costa do Pará, há muito é associado ao ouro. Mas só recentemente se tornou valioso.
A razão por trás disso é um mistério para eles. “A grude é usada para fazer cola ou plástico? Talvez seja para produtos de beleza? Quem pagaria tanto por comida?”, se perguntam. Quem está familiarizado com o comércio sabe que os preços das bexigas natatórias dos peixes machos e fêmeas são diferentes e que as dos machos valem mais. Um ex-pescador achava ter a resposta: “É um afrodisíaco?”.
Na China, a bexiga natatória seca é considerada por muitos como fonte de recursos medicinais, que variam conforme espécie, tamanho, idade e origem do peixe. Em razão disso, a captura da bexiga natatória da pescada-amarela para exportação torna-se cada vez mais uma fonte vital de renda para alguns pescadores na costa amazônica.
De acordo com especialistas, o peixe — e a indústria pesqueira em geral — pode ser uma alternativa de menor impacto para o bioma amazônico, sobretudo em relação a produções como a de carne e de grãos, grandes vetores de desmatamento.
No entanto, a falta de pesquisas, regulamentação e fiscalização podem prejudicar o potencial de longo prazo da bexiga natatória e, como qualquer “corrida pelo ouro”, é provável que se esgote.

Preços de ‘grude’ disparam

Nossas entrevistas e outros estudos mostram que a bexiga natatória já era vendida para a China no início do século 20. Mas só na última década que quantidades e preços dispararam.
Qualquer que seja seu uso, os pescadores de hoje estão interessados em aproveitar o crescente mercado e os altos preços da grude.
À tarde, em um vilarejo tranquilo perto de Vigia, a maré está baixa, e o pequeno barco de pesca de madeira de Élder Júnior repousa silenciosamente sobre o lodo. Júnior, 37 anos, sorri enquanto repara suas redes, com a lançadeira em sua mão girando rápido para trás e para frente.
Júnior voltou do mar recentemente. Ele e outros três pescadores passaram dez dias em um barco com menos de cinco metros de comprimento. Trouxeram de volta 40 pescadas-amarelas, um total de 142 quilos.
Foi uma boa pescaria. A carne do peixe cobrirá apenas o custo do combustível. A bexiga natatória é o que dá lucro. Em outras palavras, a expedição seria inútil se ele não conseguisse vender a bexiga. “Quando minha filha era pequena, eu usava a grude para fazer bonecas para ela”, brinca Júnior. É claro que hoje ele não faz isso.

O pescador Élder Júnior repara redes de pesca no entorno de Vigia, Pará, com seus companheiros de trabalho. Eles costumam intercalar 10 dias no mar com 7 dias em terra.

Júnior pesca desde os 12 anos. Na primeira vez que seu filho de 10 anos pôs os pés em um barco, ficou enjoado. Mas Júnior ficou contente: “Isso significa que ele será mais feliz indo à escola”. Sua família pesca há gerações, mas ele espera que seus filhos façam outra coisa.
Apesar dos ganhos, é uma vida mais difícil para Júnior do que foi para seu pai, diz ele, já que há mais barcos para competir, inclusive os grandes.
Na maré cheia, no dia seguinte, um barco grande chega a Vigia após semanas no mar. Ele descarrega centenas de pescadas-amarelas do porão — todas com as bexigas natatórias já removidas. De outro barco, um saco cheio de bexigas natatórias secas é jogado no cais, onde um carro o esperava. Um grupo de pessoas de aparência séria o carrega para o porta-malas. Eles ignoram nossas chamadas e vão embora.

Águas turvas no comércio da grude

Ao saber que estávamos fazendo uma reportagem sobre o comércio de bexigas natatórias, Bianca Bentes, professora do Núcleo de Ecologia Aquática e Pesca da Amazônia da Universidade Federal do Pará, nos informou que poderíamos ter dificuldades para acessar o mercado como repórteres.
Bentes nasceu em Santarém, no Pará. Ela começou a estudar a pesca da região em 1996. Foi então que ela se deparou pela primeira vez com o comércio de bexigas natatórias. Os peixes de água doce, com os quais ela tinha mais familiaridade, têm bexigas natatórias sem valor comercial.
No passado, quando começou a pesquisar sobre esse mercado, ela foi avisada para não se envolver. Outros especialistas também nos alertaram que investigar o comércio de grude poderia ser “sensível”.
Um pesquisador local, que deu entrevista sob condição de anonimato por temer implicações no seu trabalho, não conseguiu explicar por que o assunto havia “se tornado tabu”. Tem algo “a ver com os enormes lucros”, disse ele.
As cadeias de abastecimento entre a Amazônia e o mercado final do outro lado do mundo não são complexas. A bexiga natatória é frequentemente retirada do peixe, limpa e seca enquanto o barco ainda está no mar. O proprietário do barco então a vende — às vezes diretamente aos exportadores, mas mais frequentemente ao primeiro de uma série de compradores intermediários. O exportador envia a grude para Hong Kong por via aérea ou marítima.

Os comerciantes mantêm um perfil discreto. Em entrevistas, nos falaram que algumas empresas exportadoras equipam com vidro à prova de balas os veículos que transportam as bexigas natatórias, e que comerciantes chineses têm sido alvo de grupos criminosos locais.
A maior parte do lucro no Brasil vai para atravessadores e exportadores. Eles preferem manter esse comércio longe dos holofotes para evitar o aumento na concorrência e  roubos, que são frequentes na região.
Por esses motivos, ficamos surpresas quando uma empresa exportadora de bexiga natatória disse que estaria disposta a nos dar entrevista.

Boom da grude gera competição

Marcius Santos, de 46 anos, é um empresário local que vem de uma família de pescadores e começou a comercializar peixe quando tinha vinte e poucos anos. Em 2018, ele se uniu a Huang Wei, empresário chinês da província Jiangmen, na China, para exportar bexigas natatórias.

Pescadores ou atravessadores vendem bexigas natatórias para empresas exportadoras, onde o produto passa por um processo de controle de qualidade, limpeza e secagem, antes de ser exportado sobretudo para Hong Kong.

Em Bragança, cidade costeira ao norte do Pará, Huang abre o armazém da empresa. Bexigas natatórias de todas as formas e tamanhos, limpas e secas, repousam em sacos esperando para serem transportadas de avião para Hong Kong.
“Essas grandes são de gurijuba e não recebem um bom preço”, ele explica.
Lá fora, um caminhão puxa e descarrega vários sacos de grude de pescada-amarela. Huang retira dois, cada um com dezenas de centímetros. Ele os bate para julgar se estão secos ou não. Estes são bons: “Eles devem ser transparentes e não gordurosos”. A empresa tem uma controladora de qualidade que ordena as bexigas natatórias de acordo com a demanda do mercado. O tamanho e a forma são importantes, mas a espécie é o verdadeiro determinante do preço. A mais cara é a da pescada-amarela.
“O mercado na China é enorme. Se houver mercadorias, eles comprarão”, diz Huang, que tem feito negócios no Brasil há sete anos: “No início eu comprava um quilo por cerca de R$ 1.000. Agora custa R$ 3.000, mas na China os preços não mudaram tanto”.
Ele diz que, com mais empresas competindo por uma fatia do mercado, os lucros não são os que costumavam ser, então eles os compensam movimentando maior volume.

“O boom da bexiga natatória não tem 10 anos. Antes, a bexiga natatória era um subproduto do peixe; hoje é o principal produto”, diz Marcius Santos, sócio de uma empresa exportadora de bexiga natatória em Bragança, Pará.

Santos diz que o Pará tem mais de dez empresas como a dele, e muitos compradores intermediários. Um deles, Ilto Silva, ex-motorista de caminhão, disse que há pelo menos 50 pessoas trabalhando na mesma função que ele em Bragança, onde vive.
Silva compra bexigas natatórias in natura em cidades próximas e as leva a uma fazenda para serem limpas e secas antes de vendê-las aos exportadores. “Todo mundo vê os preços altos e acha que é fácil ganhar dinheiro”, diz ele. “Mas quando você começa, percebe como a concorrência é acirrada. Além disso, mais empresários chineses estão chegando”.
Em uma pequena vila de pescadores perto de Bragança, há um lugar de compra de bexiga natatória ao lado de uma peixaria. Em Vigia, perto de onde os barcos atracam, uma empresa desenhou uma pescada-amarela na parede, anunciando a compra de grude.

Fachada de uma empresa compradora de grude em Vigia, Pará.

No passado, havia talvez apenas uma dúzia de pessoas no setor, explica Santos. Agora, são quatrocentas ou quinhentas. O afluxo de novos agentes significa que este comércio, outrora discreto, está ficando mais visível.
O súbito aumento da atividade pesqueira, impulsionado pelo comércio da bexiga natatória, porém, preocupa pessoas como Santos.
“Ninguém sabe quantas pescadas-amarelas estão sendo capturadas”, diz ele. “Quase todas as indústrias extrativas devem ser ordenadas, mas aqui no Brasil a gente espera primeiro o problema estourar para depois arrumar. Nunca conseguimos antecipar o problema”.

Ameaça da sobrepesca

Ninguém, desde funcionários da pesca em pequenas cidades como Vigia e Bragança até o governo federal, conseguiu nos dar muitos dados sobre o comércio de bexigas natatórias. Em resposta a um pedido feito pela Lei de Acesso à Informação (LAI), o governo federal diz não ter dados sobre quantas bexigas natatórias são coletadas, nem sobre quantos pescadores as estão coletando.

Dados oficiais do Brasil não listam as exportações de bexiga natatória por espécie. Não há sequer um código específico para a bexiga natatória nos dados de exportação — ela aparece junto a cabeças e caudas de peixe. No entanto, Bianca Bentes e outros especialistas explicam que esse código corresponde quase inteiramente à bexiga natatória, pois cabeças e caudas de peixe têm pouco valor comercial. Embora os dados brasileiros não sejam 100% precisos, eles dão uma ideia do tamanho do mercado — o que pode ser comprovado ao compará-los com os dados de importação de Hong Kong.
Somente em 2015 que Hong Kong começou a rastrear a bexiga natatória seca como um único item — anteriormente era classificada como “peixe seco”. Entre 2015 e 2020, um total de 20 mil toneladas de bexigas natatórias foram importadas para o território, com um valor declarado de 14 bilhões de dólares de Hong Kong (R$ 9,95 bilhões).
As importações para esse período vieram de mais de cem países. O Brasil foi o maior entre eles, com 3.300 toneladas no valor de 3 bilhões de dólares de Hong Kong (R$ 2,13 bilhões). Ao todo 95% vieram do Pará. O estado do Amapá, ao norte do Pará, também produz grude, mas a maioria é exportada via Pará.

Em 2020, o Brasil exportou 637 toneladas de bexiga natatória, um aumento de 398% em relação a 2012, quando 127 toneladas foram exportadas (os dados anteriores a 2012 não estão disponíveis).
Durante anos, tanto a oferta quanto a demanda foram consideradas estáveis. Fique no mar por tempo suficiente e você terá grude, e a China a comprará, acreditaram os pescadores. Huang diz que as coisas têm sido difíceis para os empresários chineses em outras cidades do Brasil, devido à economia estagnada. Isso os empurrou para o comércio de grude durante a última década.
Bentes acredita que o boom do comércio de pescada-amarela está ligado a quedas na captura desde 2001 da piramutaba, uma espécie de bagre: “Todos que estavam nesse comércio migraram para a grude”.
Há 30 anos, Bentes conseguia encontrar pescadas-amarelas de 2,5 metros de comprimento no mercado. Agora um peixe de 1,5 metro parece grande: “Esse é um sintoma clássico da sobrepesca”.

Espécies ameaçadas em outras regiões

Em outras partes do mundo, a extração de bexiga natatória tem causado danos irreversíveis ao meio ambiente. A grude mais valiosa costumava vir da bahaba, uma espécie de peixe encontrada na China. O comércio da bahaba foi proibido em 1989, mas as populações continuaram a diminuir e, em 2006, ela foi adicionada à lista vermelha de espécies ameaçadas da UICN.
Com isso, o comércio se voltou para a totoaba, um peixe encontrado no Golfo da Califórnia, no México. Mas a vaquita, uma espécie de boto endêmica dessas águas, foi muito capturada acessoriamente nas redes de totoaba. Segundo o Comitê Internacional para a Recuperação da Vaquita, trata-se de um dos animais marinhos mais ameaçados de extinção do mundo.

Bexiga natatória seca. O preço das bexigas natatórias varia de acordo com a espécie e a qualidade de cada peça. Foto: Sarita Reed

A pesca de totoaba tem atraído a atenção da mídia internacional desde 2013, quando a urgência da situação da vaquita veio à tona. China, México e EUA têm trabalhado em operações de fiscalização. No entanto, a pesca ilegal de totoaba continua, e o comércio de sua bexiga natatória, cujo quilo é mais valioso que o da cocaína, é controlado por um grupo criminoso complexo e altamente organizado.
Uma pesquisa publicada pela Marine Policy em julho de 2021 confirma que hoje pelo menos dez espécies são capturadas pela sua bexiga natatória, em comparação com apenas uma ou duas no passado. No entanto, as épocas de defeso e os limites de tamanho estão em vigor apenas para a gurijuba. A pescada-amarela está listada como vulnerável na Lista Vermelha da UICN. Não houve avaliação de sua situação no Brasil.
“Nós percebemos o aumento da pressão pesqueira sobre esses estoques, embora não tenhamos uma análise disso por falta de dados oficiais”, diz Bentes.

Mercados longínquos

Pessoas do setor dizem que Hong Kong é tanto consumidora quanto reexportadora de grude. Grande parte do produto é contrabandeada para a China continental, onde as várias permissões necessárias são um obstáculo às exportações diretas.
A bexiga natatória possui uma variedade enorme de nomes em chinês. Frequentemente, o nome revela pouco: “bexiga natatória do mar do norte” ou “ahajiao” pode vir de mais de uma dúzia de espécies de peixes e de várias origens. A maioria é da América do Sul. Às vezes, os menores são chamados de “bexigas natatórias yin e yang”. Os mais caros são chamados de “bexiga natatória do dinheiro do mar do norte”.

A bexiga natatória é considerada uma iguaria chinesa e aclamada por seus presumidos benefícios medicinais. De acordo com a medicina tradicional chinesa, ela pode parar a tosse, prevenir efeitos colaterais de medicamentos, tratar problemas estomacais ou renais, alimentar o feto e enriquecer o sangue.
A produção de bexiga natatória figura em um inventário de herança cultural intangível de Hong Kong. Apesar da valorizada tradição, o colágeno da grude é de difícil digestão, de acordo com a ciência moderna. Ainda assim, a grude pode ser barata o suficiente para ser um alimento cotidiano, e exemplares mais caros são considerados um excelente presente na China. Os mais valiosos são itens de colecionador.
Novos produtos continuam aparecendo. A bexiga natatória da corvina dourada (da bahaba) continua sendo a mais apreciada: uma foi vendida por mais de US$ 475 mil (R$ 2,6 milhões) o quilo em 2012. Acredita-se que uma recém-chegada, a “bexiga natatória aranha”, venha em segundo lugar, sendo vendida por mais de 55 mil dólares de Hong Kong o quilo (39 mil reais) em Hong Kong . Elas vêm principalmente do Vietnã e da Indonésia, e sua demanda já deixou a espécie de peixe em perigo de extinção.
Para Yvonne Sadovy, professora da Escola de Ciências Biológicas da Universidade de Hong Kong, o mercado de bexigas natatórias lembra o de diamantes.

Como no caso da pedra preciosa, o valor da bexiga natatória se deve em grande parte ao “impacto de atributos físicos ideais reconhecidos”, Sadovy e coautores escreveram em um artigo de 2019. Para um diamante, esses atributos são quilates, corte, cor e pureza. Para a bexiga natatória, são tamanho, espessura, espécie, origem e forma. Os atributos propagandeados pelo comerciante e os desejos do consumidor acabam determinando o valor. A especulação por colecionadores (a bexiga natatória tem boa durabilidade e é considerada mais valiosa quanto mais velha) e mesmo as interseções com o crime organizado são outras semelhanças com o mercado de diamantes.
“A analogia deixa de funcionar quando se considera o fornecimento”, diz o estudo de Sadovy, “enquanto os diamantes no solo são abundantes, muitas espécies de peixes visados não o são, o que significa que são necessários controles sobre esse segmento do comércio de bexiga natatória”.

Sustentabilidade, um assunto crítico

O governo construiu um ponto wi-fi gratuito junto ao rio no centro de Vigia. Todos gostam de parar ali para aproveitar a sombra e a conectividade. Comerciantes de peixe e vendedores de material de pesca, capitães de barco e pescadores, motoristas e guardas, todos se reúnem ali. “Eu lhes digo, os peixes estão mais espertos”, ri Silvio Sardinha, capitão de barco. Seu barco é um dos que Júnior consideraria “grande”. Sardinha, porém, pescou pouco em sua última viagem de 20 dias. “Há mais barcos, por isso os peixes estão ficando mais espertos”.

Silvio Sardinha trabalha como capitão de barco em Vigia. “Estamos preocupados com a questão dos piratas – são muitos. Não podemos voltar com bexigas natatórias à noite; temos que voltar durante o dia por questões de segurança”, diz.

A grude funciona também como moeda. Muitas vezes, os barcos grandes são comprados por meio de um investimento conjunto entre compradores de peixe e de grude. Eles recebem a produção do proprietário do barco — carne de peixe e bexiga natatória — para pagar o investimento feito na embarcação. Às vezes, o próprio proprietário atua como capitão; às vezes o capitão é contratado, como no caso de Sardinha. Uma tripulação é chamada para trabalhar, e a produção é usada diretamente para pagar o empréstimo.
“O patrão quer a pesca. Se uma viagem correr mal, eles esperam pela próxima. Isso é muito melhor do que ir a um banco, que quer o seu dinheiro todo mês”, diz Sardinha. “Com um barco novo e um pouco de sorte, você pode saldar sua dívida”.
“No passado, os investidores se entusiasmavam com as barbatanas de tubarão”, acrescenta ele.
Mas há uma década ou mais, os tubarões foram caçados até a extinção. O comércio de barbatanas de tubarão floresceu no Pará até 2012, quando o Brasil determinou que os animais deveriam ser desembarcados com suas barbatanas presas aos corpos. A pesca e a venda de algumas espécies foram proibidas nos anos seguintes.
Para aqueles que vivem na Amazônia, esta é uma história familiar. Um boom após o outro trouxe crescimento e, depois, colapso. “É como a mineração de ouro: muitos mineiros, pouco ouro”, diz Sardinha.
Ele nos conta que começou a pescar quando tinha 7 anos. Agora tem 50 e um grande barco com GPS e armazém frigorífico. Com menos peixes ao alcance, ele precisa queimar mais combustível para viajar mais longe no mar. Cada vez que ele volta à terra firme, as redes e o combustível estão mais caros, então ele precisa ganhar mais com a próxima viagem.
A maré cheia naquele dia chegou tarde, e o rio estava calmo. Sardinha balançou a cabeça, dizendo que deveríamos ter vindo aqui no Ano Novo. “O rio inteiro fica cheio de barcos. Não se encontra nenhum lugar para atracar”, diz.
Diego Cardoso, secretário de Pesca e Desenvolvimento Rural de Vigia, diz que a pesca é a principal indústria de Vigia. “Sem a pesca, todas as outras atividades econômicas da cidade sofreriam”, afirma.

Em Vigia, Arlindo Araújo, dono de um barco, segura uma bexiga natatória seca (esquerda) e outra in natura (direita). “Os materiais [de pesca] são muito caros. Se não fosse a bexiga natatória para nos ajudar, não seríamos capazes de continuar”, diz ele.

Mas, nas margens do rio, os pescadores contam nos dedos o número de espécies que viram desaparecer. Os preços altos e a falta de regulamentação nas cadeias de fornecimento trazem prosperidade temporária, mas são seguidos de um colapso de oferta. Yvonne Sadovy já viu isso muitas vezes:  pessoas com poucos recursos financeiros veem “uma maneira de fazer dinheiro, mas não de fazer isso durar”.
Pior, os pescadores assumem dívidas para aumentar sua capacidade de pesca e perdem o poder de negociação. Não tem que ser assim, diz Sadovy. Se os pescadores pudessem se organizar para administrar seus recursos, eles poderiam retomar o controle dos preços. Se os consumidores percebessem que, quando uma espécie enfrenta a extinção, eles perdem completamente o produto, eles buscariam um consumo mais consciente.
“Se conseguirmos administrar melhor o oceano, poderemos ganhar mais com ele”, acrescenta Sadovy.
Paulo Amaral, pesquisador sênior do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), acredita que a pesca é uma das fontes de renda mais promissoras, inexploradas e potencialmente sustentáveis para as comunidades da Amazônia, pois causa menos impacto para a floresta do que a produção de gado e grãos.
Sem ordenamento, no entanto, o futuro da pesca pode ser sombrio. “A falta de inspeção e controle sobre o que é pescado ainda é muito grande”, lamenta Amaral.

Mais peixe no mar?

Perto de Vigia, Júnior carrega em sua memória gerações de conhecimentos sobre pesca. Agora há mais barcos — e mais piratas. É arriscado ir ao mar sozinho ou colocar novos equipamentos de pesca a bordo. Nem as marés têm estado estáveis. “Mas espere que a lua saia”, diz ele, “vamos ouvir a pescada-amarela estalando”.

João de Oliveira é vigia de barcos, cargo que se tornou necessário devido aos frequentes furtos de barcos e equipamentos.

“Às vezes, você pode ouvi-la do convés. Às vezes, descemos para ouvi-la através do casco, ou simplesmente entramos na água. É como um martelo — pá, pá, pá, pá”.
As pescadas-amarelas, e outros peixes da família das corvinas, se reúnem quando procuram por companheiros — o peixe macho usa sua bexiga natatória para fazer um som de batida.
Se Júnior pudesse conhecer alguns pescadores antigos de Hong Kong, eles teriam muito sobre o que conversar. Nos anos 1960, a bahaba chinesa costumava fazer o mesmo barulho nas águas a oeste de Hong Kong. Os pescadores pressionavam suas orelhas contra o casco do barco para rastrear os peixes. Peixes de 40 kg eram capturados à época, às vezes até de 80 kg.

O quilo da bexiga natatória de pescada-amarela vale cerca de R$ 2.800, enquanto o quilo da carne de pescada-amarela vale cerca de R$ 20. Foto: Sarita Reed

Após a sesta, a vila de pescadores começa a se animar. Alguém aponta para o manguezal. Se o comércio de grude acabar, eles dizem que podem pegar caranguejos. Para pegá-los, os habitantes da vila enfiam seu braço na lama do mangue e esperam alguns minutos. Quando o puxam para fora, ele está coberto com caranguejos. Outro pescador ri da ideia. “Você ganha R$ 1 por um caranguejo; cem caranguejos, R$ 100. Você consegue pegar 100 em um dia? Mesmo se você conseguir, ainda não é o suficiente para alimentar uma família”.
Todos abanam a cabeça, dizendo que as coisas vão ficar bem. Haverá alguma coisa para pegar no mar.

Esta reportagem foi produzida pelo Diálogo Chino e pela Initium Media, com apoio do Amazon Rainforest Journalism Fund em parceria com o Pulitzer Center.

Texto original disponível em: https://infoamazonia.org/2022/01/20/grude-movimenta-mercado-milionario-no-brasil-e-leva-chineses-a-amazonia/

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